sábado, 10 de junho de 2017

CIDADE EM CHAMAS = GARTH RISK HALLBERG





Todos nós procuramos verdadeiramente aquele sítio em que temos a noção que somos infinitamente frágeis e vulneráveis mas não nos importamos verdadeiramente com isso. É duvidoso que esse sítio exista mas o segredo estará na procura e na descoberta… dele… de nós mesmos. De uma forma ou de outra este assunto aparece em tantos e tantos livros, escrito de tantas e tantas formas. No “Cidade em chamas” surge na multiplicidade de personagens que, escusado será dizer, são confrontados com os medos e fantasmas que enterram para não ter que lidar e admitir a tal infinita fragilidade e vulnerabilidade. Não há receitas de como devemos lidar com eles, de como podemos ficar em paz com eles, mas existe sim a grande lição de que teremos que o fazer mais cedo ou mais tarde.

É um livro grande, onde vamos saltando de história em história, que em pequenos e em grandes momentos se cruzam, que tem principalmente Nova Iorque como cenário desde 1959 passando pelo apagão de 1977 até aos dias de hoje e que aborda o extremismo, a marginalização, a homossexualidade, a violência contra as mulheres, as drogas, o poder e a liberdade.

Deixo-vos uma reflexão, de uma jovem, sobre a liberdade que é tão maravilhosa pelo facto de realçar que o imperialismo do eu consegue infetar todas as pequenas e grandes cenas.

“anarquia (grego anarkhía, -as, falta de chefe) 1. Uma sociedade utópica constituída por indivíduos que não têm governo e que gozam de liberdade absoluta.
A PÁGINA DO ENSAIO – Sobretudo política
Parece que hoje em dia toda a gente fala nisso, desde o “Anarchy in the U.K.” ao “Up Against The Wall Motherfuckers”. Vamos ao Vault numa sexta à noite e vemos pelo menos três miúdos com t-shirts brancas com o A maiúsculo dentro de um círculo pintado na frente. Se calhar até sou um deles. Porque de certo modo toda a cena punk tem a ver com libertação. Mas depois quando fui ver a definição acima e pensei bem nisso, comecei a ver uma tensão da qual de início não conseguia escapar. Por um lado: Liberdade completa. Liberdade para ser quem eu quiser. Exprimir-me como quiser. Viver onde quiser. Produzir o que quiser. Sintonizar a música que quiser no meu rádio. Mas também, se quiser, roubar o teu rádio, privar-te da tua própria música. Da tua utopia. Isto parece à primeira vista uma objeção infantil; basta introduzires na tua constituição anarquista ou lá o que for que o limite da liberdade é onde ela começa a infringir a liberdade dos outros. Mas veja-se um caso ligeiramente mais complicado. Digamos que sou casada com uma pessoa que não amo. Ou o equivalente anarquista de casamento. Digamos que tenho um filho. Tenho o direito de me libertar disso e simplesmente partir. Mas se o fizer, magoo o meu filho. Ou se levar o miúdo , magoo o meu marido. Mas se escolher não magoar nenhum dos dois, eles estão num certo sentido a magoar-me a mim. A infração, por outras palavras, está em todo o lado, e esta cena de liberdade é muito mais confusa do que parece á primeira vista.
Uma forma possível de fazer a quadratura do círculo, quer-me parecer, tem a ver com a outra parte de definição acima, “constituída por indivíduos”. Pergunto-me o que aconteceria se começássemos a pensar em unidades maiores do que esta. Como se o coletivo não fosse uma coisa que vem depois do individuo, mas aquilo que vem antes. Que torna o individuo possível. E se pudéssemos simplesmente definir “gozam de liberdade absoluta” de uma forma mais coletiva? Isso é possível sequer? Não sei, mas a alternativa atual parece sugerir que o imperialismo do eu infetou até esta nossa pequena cena. Aconselho os meus homólogos das t-shirts a começaram a pensar nestas coisas, a sério, porque daquilo que estamos a construir juntos no fim de contas só vais sobreviver – e talvez nós próprios também – se conseguirmos ultrapassar estes eus gritantes. Estes eu eu eu.”

997 páginas
Teorema - Leya

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