domingo, 13 de agosto de 2017

O Ministério da Felicidade Suprema * Arundhati Roy




Gosto de pessoas que dizem o que têm a dizer, no momento certo, de forma assertiva, sem mascarar a realidade, Arundhati Roy é assim. Admiro pessoas com personalidades fortes, com convicções e visões do mundo bem definidas assentes numa ausência de etnocentrismo e numa sensibilidade humana e global sobre a vida no nosso planeta, Arundhati Roy é assim. É frequente estas pessoas trazerem desconforto, porque simplesmente colocam o dedo na ferida e não deixam as consciências adormecerem, Arundhati Roy é assim. São pessoas que não levantam bandeiras por opção, mas “Porque sou uma árvore. Não posso ser transplantada. As minhas raízes são profundas e eu pertenço ao meu país. Sentiria saudades das outras árvores se me fosse embora. Faço parte daquele clima, daquele solo, e não sei porque haveria de o deixar. Eles que o deixem. Eles que se vão embora.”*

Arundhati Roy afirma que o que se passa no mundo não pode ficar fora da Literatura*… também ela não pode ficar fora dos seus livros…

“A que casta pertenço? É essa a vossa pergunta? Com uma agenda política tão grande como a minha, digam-me, a que casta deveria pertencer? De que casta eram Jesus e Gautam Buddh? De que casta era Marx? De que casta era o profeta Maomé? Só os hindus têm estas castas, esta desigualdade incluída nas suas escrituras. Sou tudo exceto hindu. Como Azad Bhartiya, posso dizer abertamente que renunciei à fé da maioria do povo deste país, exclusivamente por este motivo. Devido a isso, a minha família não fala comigo.”

“Ela não se parecia com nenhuma das raparigas pálidas e bem arranjadas que eu conhecia (…) Ela tinha um rosto pequeno, de ossos delicados, e um nariz direito, com narinas atrevidas e abertas. O cabelo comprido não era liso nem encaracolado, mas revolto e pouco cuidado. (…) Não era alta, mas tinha pernas compridas e uma postura, com o peso apoiado na parte da frente dos pés e os ombros direitos, que era quase masculina, mas ao mesmo tempo não era. (…) A ausência total do desejo de agradar, ou de por alguém à vontade, podia, numa pessoa menos vulnerável, ser vista como arrogância. Nela, dava uma impressão de solidão indiferente. Por trás dos óculos simples, nada modernos, os olhos de gato ligeiramente inclinados tinham o secretismo despreocupado de um pirómano. Ela dava a impressão de se ter escapado de uma trela. Como se estivesse a passear sozinha enquanto nós éramos passeados – como animais de estimação.”

Para mim estes fragmentos (e mais alguns), que pertencem a personagens diferentes definem-na e por isso seria impossível falar do livro sem antes falar da escritora.

Mas o livro…. é uma simples e perpétua obra de arte…

Não é surpreendente que, para retratar a Índia dos nossos dias, duas das personagens principais sejam um transexual e um militante de Caxemira, mas desenganem-se aqueles que julguem que o que vão ler é a vitimização destes excluídos. O livro é acima de tudo uma mensagem de força e de dignidade.

Anjum… [que ao contrário das pessoas que não são como ele - cuja infelicidade é causada pelo “aumento dos preços, as propinas da escola dos filhos, os maus-tratos dos maridos, a traição das mulheres, os motins hindu-mulçumanos, a guerra indo-paquistanesa… coisas exteriores, que acabam por se resolver.” - tem o motim dentro dele, a guerra está dentro dele, nunca se resolverá, é impossível]

…e Musa… [que afirma: “- Sabes o que é mais difícil, para nós? O que é mais difícil de combater? A pena. É tão fácil termos pena de nós próprios… aconteceram coisas tão terríveis ao nosso povo… aconteceram coisas terríveis em todas as casas. Mas a autocomiseração é tão… tão debilitante. Tão humilhante. Mais do que a Azadi, esta é agora uma luta por dignidade. E a única forma de mantermos a dignidade é lutar também. Mesmo que percamos. Mesmo que morramos. Mas, para isso, nós, enquanto povo… enquanto pessoas vulgares… temos de nos tornar um a força de combate… um exército. Para fazer isso temos de nos simplificar, de nos padronizar, de nos reduzir… toda a gente tem de pensar da mesma maneira, de querer o mesmo… temos de nos livrar das nossas complexidades, das nossas diferenças, dos nossos absurdos, das nossas nuances… temos de nos tornar tão tenazes… tão monolíticos… tão estúpidos… como o exército que enfrentamos. Mas eles são profissionais, nós somos apenas pessoas. Esta é a parte pior da Ocupação… o que nos obriga a fazer a nós próprios. Esta redução, esta padronização, esta estupidificação… (…) esta idiotização… se e quando a alcançarmos, será a nossa salvação. Tornar-nos-á invencíveis. Primeiro será a nossa salvação, e depois… depois de vencermos… será a nossa némesis. Primeiro Azadi. Depois aniquilação. O padrão é esse.”]

…mostram que “Depois de cairmos da face da Terra (…) nunca mais paramos de cair. E, enquanto caímos, agarramo-nos a outras pessoas em queda. Quanto mais cedo o compreenderes, melhor. Este lugar onde vivemos, onde construímos o nosso lar, é o sítio das pessoas em queda. Aqui não há haqeeqat. Arre, nem nós somos reais. Não existimos realmente.”…

… mas também mostram que “há felicidade nos lugares mais estranhos e inesperados. E, por mais frágil que seja, tem a sua integridade”*…

… e que por isso “temos de redefinir ou mudar a receita de felicidade que nos têm tentado impingir. Repensar o que há de verdadeiro quando nos dizem «isto é progresso», «isto é civilização», «isto é felicidade» ou «isto é família» - e isso requer muita coragem.”*



463 páginas
Asa

*Arundhati Roy em entrevista à Revista E do Expresso na edição de 5 de agosto de 2017

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